UM REMÉDIO AMARGO NO DOCE

Um remédio amargo no Doce

 

Próximo ao 8º Fórum Mundial das Águas, a se realizar em 2018 no Brasil, o balanço sobre os 20 anos da instituição da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), Lei 9.433/1997, contabiliza o saldo positivo de ter estabelecido o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), seus instrumentos de gestão e respectivas instâncias deliberativas e executivas. Entretanto, o recente rompimento da barragem de rejeitos minerários em Mariana, Minas Gerais, nos proporciona um meio para avaliar se o modelo de gestão está devidamente consolidado e apto a exercer sua função dentro da governança hídrica no país.

O SINGREH permite que a gestão dos recursos hídricos seja descentralizada ao estabelecer o comitê de bacias, órgão consultivo e deliberativo, vinculado ao poder público e subordinado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), como uma estrutura tripartite – em que usuários de águas e sociedade civil compartilham a decisão com o poder público. As deliberações são executadas por Agências de Bacias Hidrográficas ou entidades equiparadas (Lei 10.881/2004), que apoiam técnica e administrativamente o sistema.

Embora esse atual modelo seja um avanço, por permitir a participação direta das partes envolvidas e interessadas na gestão dos recursos hídricos, na prática, a efetividade dos comitês ainda encontra obstáculos. A natureza multisetorial do Comitê, apesar de conferir legitimidade às decisões territoriais, incorpora grande complexidade ao processo de gestão e o incapacita à tomada de decisões rápidas, necessárias em situações críticas. Esta complexidade é ainda aumentada pela característica excessivamente generalista dos Planos de Bacias e da chamada dupla dominialidade, definida pela gestão hídrica compartilhada entre a União, que gere os rios interestaduais, e os estados, gerindo os rios internos.

Por outro lado, temos já uma consolidação de Comitês que possuem experiências relevantes de práticas de governança multinível, em que os diversos setores procuram identificar a convergência de interesses e capacidades distintos para alavancar as ações projetadas pelos Planos de Bacias. Os esforços são centrados na busca por sinergias entre os investimentos setoriais e os programas coordenados pelos Comitês, por meio da alocação dos recursos da cobrança pelo uso de água. Em que pese a necessidade urgente de aprimoramento desse instrumento de gestão, a presença de uma entidade com legitimidade instituída pela PNRH e com capacidade de investimento é uma peça valiosa para o fortalecimento de uma forma de governabilidade territorial descentralizada.

Em novembro de 2015, o já degradado rio Doce viveu um dos maiores desastres ambientais do país, pondo a prova o sistema de gestão. Face à dimensão do dano, as reparações e compensações a serem realizadas pelos responsáveis foram negociadas e acordadas entre as empresas e poder público, por meio de um Termo de Transação de Ajustamento de Conduta (TTAC). Em relação à gestão do processo de recuperação ambiental, muito embora a bacia já possua todas estruturas do SINGERH implantadas e consolidadas, a solução encontrada foi de criar uma nova estrutura de governança centrada em um Comitê Interfederativo (CIF), composto por instituições governamentais. Muito semelhante a já existente, trata-se de uma estrutura transitória que surgiu impositivamente no calor de um grave acidente, e que não prevê a participação social defendida pelos comitês. Em outras palavras, trata-se de um comitê ad hoc, que compõe a estrutura do SINGREH e que pode ser visto como um bypass no sistema vigente.

O intuito aqui não é lançar críticas e, sim, fomentar uma reflexão mais profunda e democrática sobre a criação de uma esfera de governança, não prevista no SINGREH, para gerir ações sobrepostas ou inerentes aos planos de bacias. Nessa perspectiva, o CIF pode ser visto como um remédio amargo mas necessário, justificado por uma crise aguda e intensificada pela demanda social por respostas. Tal desvio estabelece um conflito com um dos principais fundamentos da PNRH: descentralizar e compartilhar a gestão dos recursos hídricos.

O CIF não é uma câmara de mediação ou arbitragem, o que seria uma ideia válida, mas, sim, um fórum governamental provisório, cuja finalidade é gerenciar a recuperação ambiental, incluindo ações não emergenciais sobrepostas às previstas no Plano de Bacias. Aplicada no momento da crise instalada, essa nova instância reflete as deficiências do SINGREH de agir prontamente em um cenário de crise aguda.

A relação entre as estruturas do SINGERH e o CIF poderá ser harmoniosa ou combativa, a depender dos contornos dados à condução da nova instituição. Algumas hipóteses podem ser cogitadas: o SINGREH e os defensores dessa estrutura preexistente resistirão ao bypass; com apoio crescente a esse desvio, o Sistema cede e desaparece, angariando mais funções ao CIF; o SINGREH supera suas ineficiências, ocorrendo uma divisão de competências, e ambas as instituições são mantidas.

Nesse contexto, é preciso reconhecer e abordar a verdadeira causa da doença do Doce e outros rios brasileiros. Independente do remédio, o fato é que as bacias dependem de uma articulação mais ampla e soluções definitivas para antigas questões, como a falta de saneamento básico. É fundamental promover o aprimoramento urgente dos instrumentos legais e de gestão, principalmente em relação aos Planos de Bacias, para que os Comitês tenham a capacidade de subsidiar os órgãos executivos e reguladores com arcabouços normativos robustos. Mesmo que um caminho seja mais fácil no curto prazo, é preciso atenção aos efeitos imprevistos que podem acarretar.

Vale lembrar que o SINGREH se fortalece em números. Hoje são mais de 200 comitês de bacias no país, o que significa centenas de cidadãos participando diretamente da gestão de recursos hídricos. O sistema conta com a Agência Nacional das Águas (ANA), altamente capacitada a dar um suporte nas principais ações dessa temática. Assim, o cerne da preocupação está na possibilidade de que as decisões sejam tomadas sem a devida apreciação e apoio da sociedade, porém, toleradas por uma necessidade casuística e transitória. Talvez, o melhor posicionamento seja o de promover mudanças que fortaleçam o sistema já existente.

Eduardo Figueiredo

Diretor-presidente do IBIO

O IBIO atua como entidade delegatária com funções de agência de águas dos Comitês da Bacia Hidrográfica do Rio Doce

Márcio Pereira

Sócio do SVMFA

 

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