É PRECISO FORTALECER OS INSTRUMENTOS DA POLÍTICA NACIONAL DE RECURSOS HÍDRICOS*

A água tem uma série de implicações no cotidiano da vida das pessoas. Além de recurso natural, é também fonte indispensável para a vida humana e animal, bem como matéria-prima para uma série de atividades, como agricultura e indústrias. As condições de existência da água impactam diretamente áreas essenciais para o bem estar social, saúde, moradia, emprego e até mesmo lazer.

Por conta dessa realidade, a legislação brasileira conta com uma política específica que versa sobre os recursos hídricos, a Lei Federal nº 9.433 de 1997. A Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), que esse ano completou 20 anos de existência, sabiamente estabeleceu como primeiro fundamento o fato de a água ser um bem de domínio público, um recurso natural limitado e que, portanto, merece atenção e parcimônia nos modos como tratamos e impactamos suas condições naturais.

Essa legislação representa o principal alicerce do Observatório da Governança das Águas (OGA), movimento multissetorial que tem como missão gerar, sistematizar e difundir informações a respeito do funcionamento do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (Singreh). Entre os objetivos do OGA está exatamente a necessidade de promover a integração da gestão dos recursos hídricos com as demais políticas setoriais, de meio ambiente, saneamento, mudanças climáticas, saúde e outras.

O Singreh é um dos instrumentos que compõe o arcabouço institucional da PNRH, juntamente com os planos de recursos hídricos, o enquadramento dos corpos de água, a outorga dos direitos de uso, a cobrança pelo uso e a compensação aos municípios (art. 5º). Todos esses instrumentos têm uma importância singular para o zelo das boas condições dos nossos recursos hídricos.

Este artigo trata especificamente da outorga. Esse instrumento da PNRH é um ato administrativo que dá a alguém o direito de utilizar os recursos hídricos, que são de domínio público, considerando o principio fundamental assegurado na legislação do uso múltiplo das águas. Ou seja, a outorga não dá o direito de propriedade e, ao mesmo tempo, observa os diversos interesses existentes para o uso da água (agricultura e abastecimento público, por exemplo) e os equaliza.

Apesar de seu potencial enorme de orientar ações para que sejam asseguradas as características de quantidade e qualidade dos corpos hídricos, conforme previsto na PNRH, o diagnóstico do cenário brasileiro não é muito animador, tanto em termos de efetividade da implementação quanto em relação ao conteúdo das outorgas emitidas.

Em termos quantitativos o último “Relatório de Cojuntura dos Recursos Hídricos” publicado pela Agência Nacional de Águas (ANA) em 2016 indica a existência de cerca de 5 mil outorgas vigentes no Brasil. São mais de 4.800 m³/s de vazão outorgada em todo território nacional, considerando tanto rios de domínio federal quanto estadual.

Considerando o aspecto qualitativo desses atos administrativos, é possível identificar uma ausência do cumprimento dos objetivos previstos na PNRH, uma vez que a outorga é majoritariamente um documento burocrático que prevê simplesmente a quantidade de água que pode ser retirada. As considerações em termos das necessidades ecossistêmicas que devem ser garantidas para que a água continue sendo produzida em qualidade e quantidade adequada simplesmente não são incorporadas no ato de outorga. Em outras palavras, aquele que recebe o direito de utilizar esse bem público não precisa oferecer nenhuma contrapartida em termos de proteger e recuperar as áreas onde capta as águas.

Felizmente, os últimos acontecimentos apontam para a direção certa. Em maio de 2017, a ANA e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) emitiram a renovação da outorga do sistema Cantareira à Sabesp. A companhia estadual de saneamento detém o direito de uso das águas do Cantareira desde 1974 (um ano depois da fundação da empresa), sendo renovada em 2004. Atualmente, com a nova outorga emitida este ano, a empresa tem o direito de uso assegurado até o ano de 2027.

A novidade mais relevante que resultou desse processo que se alongou por cerca de três anos (a outorga deveria ter sido renovada em 2014, uma vez que a outorga de 2004 tinha vigência de 10 anos) está na inclusão, pela primeira vez no Brasil, de uma condicionante ambiental. ANA e DAEE estabeleceram a obrigação de a Sabesp realizar ações que reduzam a erosão e o assoreamento dos mananciais que alimentam o sistema Cantareira, gerando, portanto, impactos positivos na infiltração de água de chuva.

Para o leitor, pode parecer obvia tal determinação, sobretudo para um sistema como o Cantareira, responsável pelo abastecimento de mais de 7 milhões de pessoas e com mais de 52 mil hectares com alta fragilidade ambiental[1]. Entretanto, essa é uma novidade relevante no cenário nacional dos recursos hídricos que merece ser reconhecida, acompanhada e exigida sua implementação.

Ainda que o conteúdo dessa condicionante seja extremamente importante, o desafio atualmente é verificar como o outorgado pretende cumprir a condicionante, como os órgãos outorgantes estão organizados para fiscalizar o cumprimento dessa e das demais condicionantes e quais os instrumentos que podem viabilizar ações de proteção e recuperação desses mananciais.

Nesse sentido, o OGA tem o papel fundamental de acompanhar e emitir os alertas necessários a respeito do cumprimento de todas as diretrizes presentes na outorga do Cantareira à Sabesp. Mais do que isso, caso o “figurino” previsto no documento seja cumprido e, conforme desejamos, a condicionante ambiental seja cumprida e aumente consequentemente a segurança hídrica desse manancial, o OGA tem como dever exportar os aprendizados desse caso para os demais rincões do Brasil.

Esse artigo tratou especificamente da outorga, mas os demais instrumentos também merecem atenção do OGA, como por exemplo, o enquadramento. O fato de existir rios de classe 4, a mais baixa em termos de qualidade da água, em outras palavras, transformando os rios em esgotos a céu aberto, é um absurdo que a sociedade brasileira deve combater. Nesse e em demais casos, o alicerce do trabalho do OGA não é somente a PNRH, mas, sobretudo a própria Constituição Federal que prevê: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida (…)” (art. 225).

Todos os instrumentos da PNRH devem ser fortalecidos, e isso será um desafio constante do árduo trabalho que o OGA tem pela frente.

* Guilherme Checco – Pesquisador do Instituto Democracia e Sustentabilidade, instituição que compõe o Comitê Gestor do Observatório da Governança das Águas

 

 

[1] “Mananciais Paulistas como prioridade na agenda pública: identificação de áreas críticas e recomendações de intervenção”. Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e Laboratório de Geoprocessamento da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, 2017.

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