Estiagem e corte drástico de recursos agravam a gestão das águas no país

Por Mario Mantovani e Malu Ribeiro*

A volta da chuva nas regiões Sul, Sudeste e Nordeste do país foram um alento para minimizar o impacto das queimadas, melhorar a qualidade do ar e bem-estar das pessoas e contribuir para a produção agrícola e de outros setores, mas ainda está muito abaixo das médias históricas. Mais de 917 municípios brasileiros estão em situação de escassez hídrica, segundo dados da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil. E o boletim de Previsão de Impactos do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) indica que os principais reservatórios de abastecimento público apresentam níveis críticos para o trimestre de agosto a outubro de 2018. A projeção é de que, mesmo com a volta das chuvas dentro ou acima da média nos próximos três meses, a vazão afluente – medida das águas que entram nos reservatórios – ficará abaixo do normal, especialmente no Sistema Cantareira (SP), de Três Marias (MG) e de Serra da Mesa (Goiás), além dos açudes do semiárido nordestino.

Essa situação reaviva a memória recente da crise hídrica de 2014 na região Sudeste e faz com que as atenções da sociedade se voltem novamente para o acompanhamento do nível dos reservatórios, quando, na verdade, o importante deveria ser combater as causas desse recorrente problema. O desmatamento e a falta de cobertura florestal nativa na proteção de nascentes e cabeceiras dos rios, associados aos maus usos do solo, ocupação irregular nas áreas de mananciais e ausência de controle e fiscalização do poder público, são fatores que potencializam os impactos do clima e agravam a escassez.

Nas áreas urbanas, os rios que em sua maioria são utilizados para diluir esgoto com precários índices de tratamento, ou sem tratamento algum, não podem ser utilizados, prejudicando o abastecimento da população, uma vez que estão poluídos e indisponíveis para usos múltiplos da água.

Somam-se a esses fatores críticos a vigência de normas e leis permissivas para uso de poluentes e venenos invisíveis, que são cumulativos no ambiente e perigosos para a saúde. Empregados sem controle por alguns setores da agricultura, contaminam aquíferos em diversas regiões do país e pioram o problema da falta de água. O aquífero Guarani, que se estende por 1,8 milhão de km2 e é a maior reserva subterrânea de água doce do Planeta, apresenta altos índices de fosfato e nitrato, assim como outras águas subterrâneas e reservatórios superficiais Brasil afora. Mesmo assim, o risco eminente de uma nova crise hídrica não vem sendo suficiente para impedir que as leis ambientais continuem a ser flexibilizadas para que poluidores não sejam punidos ou não precisem pagar pelo mau uso.

Exemplo negativo nesse sentido vem do estado do Paraná que quer enquadrar grandes rios de suas bacias hidrográficas na classe 4, que não impõe limites para diluição de poluentes. Dessa forma, as companhias de saneamento básico do estado assumem a incapacidade de tratar esgoto de forma eficiente e, para não pagar por isso, buscam rebaixar a classe dos rios paranaenses.

É preciso combater esse tipo de retrocesso e planejar ações progressivas de recuperação florestal nas bacias hidrográficas, com instrumentos de gestão como os que valorizam proprietários de terra que produzem, protegem o ambiente e usam a água de forma sustentável. O mesmo vale para as cidades, valorizando aquelas que controlam suas perdas e não desperdiçam água naquilo que é mais perverso – usar rios para diluir esgoto.

Do contrário, os desafios para enfrentar a crise hídrica serão intensificados por normas na contramão do que a comunidade científica, organizações civis e organismos de bacias têm recomendado, à exemplo da Lei 13.661/18, que alterou a regra da Compensação Financeira pela Utilização dos Recursos Hídricos (CFURH) e reduziu em R$ 510 milhões/ano o montante destinado ao Sistema Nacional de Recursos Hídricos e aos Comitês de Bacias Hidrográficas responsáveis pela gestão da água.

No estado São Paulo, a redução de receita decorrente da nova lei será de R$ 59,1 milhões neste ano. O Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro) que viabiliza projetos de municípios, usuários de água e sociedade civil integrantes de Comitês de Bacias Hidrográficas, também será impactado e terá a receita de R$ 74,5 milhões reduzida para R$ 41,1 milhões. Vários estados brasileiros que ainda não implementaram instrumentos econômicos próprios serão ainda mais prejudicados.

O Fórum Nacional de Comitês de Bacias reuniu em Florianópolis, de 20 a 24 de agosto, representantes de mais de 232 Comitês de Bacias para debater, dentre diversos temas técnicos e de governança, os impactos dessa nova regra. O grande equívoco dessa lei não é apenas a redução de verbas para o Sistema Nacional de Recursos Hídricos, mas também colocar interesses eleitorais acima da ciência e dos direitos da sociedade e não considerar os princípios da Política Nacional de Recursos Hídricos.

Reverter o descompasso e o distanciamento do parlamento brasileiro das reais necessidades da sociedade é urgente.

Para que possamos colocar em prática as metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), especialmente o ODS 6 que trata de água limpa e saneamento, é preciso fortalecer as leis ambientais, aprimorar a norma que trata do enquadramento dos corpos d’água, excluindo os rios de classe 4 da legislação brasileira e reconhecer a importância da relação entre floresta nativa e água. Assim, poderemos colocar a água na agenda estratégica do Brasil, com investimentos e instrumentos de gestão compatíveis ao tamanho do desafio e vencer o desafio de garantir o acesso à água limpa para todos.

*Mario Mantovani e Malu Ribeiro são, respectivamente, diretor de Políticas Públicas e especialista em Água da Fundação SOS Mata Atlântica.

 

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