*Leandro dos Santos Souza é Gestor Ambiental e Empreendedor Socioambiental e Guilherme Checco é Mestre em Ciência Ambiental pela USP, Pesquisador do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS).
Participação social e políticas socioambientais definitivamente não ocupam a lista de prioridades do governo Bolsonaro. Pelo contrário, a repulsa à participação social nos processos e instrumentos de consulta e tomada de decisão nas políticas públicas já foi, reiterada vezes, reforçada nas falas e atitudes do Presidente e dos seus assessores do primeiro escalão. Nas últimas semanas os noticiários nacionais e internacionais foram tomados por reportagens apontando a inação do governo federal em relação às queimadas na Amazônia e o cancelamento das doações internacionais para o Fundo Amazônia, um dos instrumentos mais inovadores e bem-sucedidos de incentivo ao combate ao desmatamento.
O posicionamento oficial do governo contra a participação social vem gerando reflexos práticos de extrema relevância nos sistemas nacionais de meio ambiente e de gerenciamento de recursos hídricos, construídos e estruturados com muito esforço ao longo de décadas, perpassando governos de diferentes matizes. Já em maio o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), órgão central para a orientação e determinação de regras para as políticas ambientais de todo o país, teve sua composição alterada, diminuindo a participação da sociedade civil. O Conama é o principal órgão assessor do Ministério do Meio Ambiente, pasta liderada por Ricardo Salles, o principal personagem que exigiu mudanças nas regras do Fundo Amazônia e fez com que o Brasil não recebesse os R$ 133 milhões, a fundo perdido, do governo da Noruega.
Agora chegou a vez do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) ser enfraquecido. No dia 3 de setembro o governo federal publicou o Decreto No. 10.000/2019, impondo alterações muito negativas na composição do CNRH. O Conselho, instituído pela Lei nº 9.433/97, representa a instância mais alta na hierarquia do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Trata-se de um colegiado responsável pela mediação de interesses entre os diversos usuários da água, competente pela implementação da gestão dos recursos hídricos no país. Por articular a integração das políticas públicas brasileiras, o Conselho é reconhecido como um importante promotor de um diálogo transparente no processo de decisões no campo da legislação de recursos hídricos.
A importância do CNRH fica ainda mais evidente ao compreender as dificuldades da gestão da água em um país continental como o Brasil, onde, apesar de ser beneficiado por 12% da água doce do mundo estar em seu território, essa distribuição é espacialmente extremamente desigual gerando dificuldades, expressadas, por exemplo, nos 276 conflitos pela água documentados pela Comissão Pastoral da Terra em 2018, impactando mais de 73 mil famílias.
O referido Decreto diminuiu pela metade os assentos da sociedade civil no CNRH, de seis para apenas três. A representação dos setores usuários de recursos hídricos (irrigantes, prestadores de serviços de abastecimento de água e esgoto, concessionárias de energia elétrica, indústrias, hidrovias e pescadores) também caiu pela metade. Ao fazer isso acabou por desprezar um elemento central de fóruns com essa natureza, a paridade entre seus membros, de modo que o governo passa, a partir de então, a ter uma posição majoritária e concentrando poder. O Presidente do Conselho, notadamente um representante do governo federal, pode tomar decisões unilaterais (ad referendum), de modo que os demais membros não têm mais a possibilidade de pedir vistas das mesmas.
O Decreto, assinado pelo Presidente da República e pelo Ministro do Desenvolvimento Regional, incorre em um erro fundamental ao equiparar os Comitês de Bacias Hidrográficas, órgãos de Estado criados a partir de lei (Política Nacional de Recursos Hídricos), à sociedade civil. Segundo o texto, tanto os representantes da sociedade quanto os dos CBHs passariam a ocupar as (limitadas) vagas destinadas à participação social.
Ainda assim o leitor pode estar se indagando qual é a real importância dessas alterações. Em primeiro lugar, a participação social é um pilar da democracia, que não se traduz unicamente no voto durante processos eleitorais, e que deve ser constantemente aprimorado e fortalecido. Além disso, nos casos do meio ambiente e recursos hídricos, estamos falando de bens de toda a coletividade dos brasileiros e brasileiras de modo que, conforme expresso no artigo 225 da Constituição Federal, tanto os governos quanto toda a sociedade têm a obrigação compartilhada de defende-los e preserva-los. Depois do CONAMA e do CNRH o que virá?
Publicado originalmente no site: http://idsbrasil.org/multimidia/137/