*Por Daniela Maimoni de Figueiredo.
Em novembro de 2018, logo após o segundo turno da eleição para presidente, Bolsonaro e sua equipe anunciaram a fusão do Ministério de Meio Ambiente com o de Agricultura, provocando intensa reação contrária de vários setores que sabem da importância da área ambiental e dos claros conflitos de interesse entre essas pastas.
Após a posse do novo governo, essa ideia foi descartada, mas outros arranjos institucionais foram criados, resultando nos Decretos nº 9.666 e 9.672 de 02 de janeiro de 2019, os quais, entre outras medidas, transferiram todo o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos (SINGREH) e a Agência Nacional de Águas (ANA) da pasta de Meio Ambiente para o Ministério de Desenvolvimento Regional. As reações a essa mudança foram tímidas, mas algumas dúvidas e incertezas pairam sobre os que estão direta ou indiretamente envolvidos com o setor de recursos hídricos, as quais merecem reflexão.
Em pouco mais de 20 anos da aprovação da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei n° 9.433 de 1997), na qual se baseia toda a gestão dos recursos hídricos no país, muitos foram os avanços legais, institucionais, democráticos e de ações de controle, manejo, planejamento e conservação das águas. Porém, ainda existem várias lacunas e melhorias necessárias, especialmente no que se refere à efetiva gestão integrada e sistêmica no âmbito das bacias hidrográficas, à melhoria na conexão com as outras políticas ambientais e vários setores correlatos (saneamento, energia), à participação social, uma vez que existem assimetrias no poder decisório de alguns foros colegiados que compõem o SINGREH, e o acesso igualitário à água, tendo em vista que as desigualdades e os conflitos gerados são uma realidade. A grande heterogeneidade na disponibilidade de água e a realidade hídrica-social-ambiental das diferentes regiões do país, o funcionamento tradicional e centralizador da burocracia estatal, as crises de escassez quantitativa e os problemas de poluição e contaminação em vários rios do país são também um grande desafio na gestão das águas e indicadores das lacunas da gestão.
Com as considerações acima, percebe-se que são inevitáveis as incertezas quanto ao futuro desse setor estratégico com a mudança proposta pelo novo governo. Os recursos hídricos, historicamente e intrinsecamente, estão relacionados ao Meio Ambiente, porém, mesmo não tendo sido propostas alterações nas atribuições da ANA e na Lei das Águas, que inclui o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), algumas das incertezas merecem ser destacadas:
- O Brasil é um país eminentemente formado por rios, cujas águas são fundamentais para as atividades econômicas e, principalmente, para a manutenção da vida humana de outros seres vivos que dela dependem. Nos ecossistemas aquáticos vivem inúmeras espécies da flora e da fauna brasileira, mantidos pelos processos ambientais. O equilíbrio desses ecossistemas é o que mantém a disponibilidade de água em quantidade e em qualidade adequadas para a vida humana, incluindo as atividades econômicas. Com isso, a abordagem dos rios como ecossistemas é fundamental na gestão dos recursos hídricos, mas nem sempre adotado no arranjo institucional até então vigente. Considerando a importância dessa abordagem, ela será mantida com a mudança do setor de recursos hídricos para o Ministério de Desenvolvimento Regional?
- Em praticamente todos os Estados brasileiros, com algumas exceções, a Gestão dos Recursos Hídricos é efetuada dentro das Secretarias Estaduais de Meio Ambiente, que por sua vez coordenam os Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos, que fazem parte do SINGREH. Essas Secretarias Estaduais deverão trabalhar tanto com o Ministério de Meio Ambiente, no que concerne às atuais competências deste órgão (Decreto nº 9.672 de 02 de janeiro de 2019), quanto com o Ministério de Desenvolvimento Regional, no que se refere aos Recursos Hídricos? Vale lembrar que, mesmo com a estrutura antiga (válida até 31 de dezembro de 2018), já existiam obstáculos na integração entre o setor de recursos hídricos com as outras políticas ambientais.
- Considerando que a gestão dos rios federais (aqueles que banham mais de um Estado brasileiro), é de responsabilidade da ANA, e dos rios estaduais (aqueles que as nascentes e a foz dentro de um único Estado e são, geralmente, afluentes dos rios federais), é de responsabilidade das Secretarias Estaduais de Meio Ambiente, como fica a integração dessa gestão entre dois Ministérios diferentes, especialmente no que se refere à outorga de uso da água e aos planos de bacias hidrográficas?
- Considerando que o licenciamento ambiental só pode ser aprovado após a outorga de uso da água (na maioria dos Estados) e que ambos são complementares e instrumentos de gestão, controle e planejamento ambiental, como serão efetuados esses procedimentos em dois ministérios diferentes, no caso de rios federais? No caso de rios estaduais, os empreendedores deverão continuar solicitando a licença e a outorga nas Secretarias Estaduais de Meio Ambiente?
- Considerando que já existem inúmeros conflitos de uso da água e crises históricas, impensáveis há poucos anos atrás, que resultaram em enormes prejuízos econômicos, ambientais e sociais e até em tragédias, e que esses conflitos e crises estão relacionados, entre outros fatores, às falhas na gestão integrada entre os recursos hídricos e demais políticas ambientais, como poderão ser evitados ou resolvidos tendo em vista a separação destes dois setores em dois Ministérios diferentes?
- Conforme a o Decreto nº 9.666 de 02 de janeiro de 2019, compete ao Ministério de Desenvolvimento Regional, além da política de recursos hídricos, a implementação das políticas de saneamento e irrigação, que são dois setores usuários da água que precisam de outorga. No caso dos rios federais, essa outorga é expedida pela ANA, ou seja, o setor controlador, fiscalizador e responsável técnico pela concessão da outorga de água para captação, diluição de esgoto ou irrigação fará parte do mesmo Ministério de dois importantes setores solicitantes de outorgas. A incerteza refere-se ao potencial em ocorrer conflitos de interesse na mesma pasta, tendo juntos setor usuário da água e setor regulador desses usos. Caso ocorra algum impasse, quais critérios serão adotadas para a tomada de decisão adequada, que vise o bem comum?
- Os conselhos estaduais de recursos hídricos são presididos, geralmente, pelo órgãos gestor de cada Estado que, em geral, como dito anteriormente, é um setor dentro dos órgãos ambientais de meio ambiente. Ficaria mantida essa presidência? Haveriam dificuldades de integração e funcionamento com o conselho nacional tendo outro Ministério como presidente?
Poderíamos listar várias outros aspectos que podem colocar em risco o funcionamento o SINGREH e a gestão efetiva da água, que tem a ver não somente com o novo arranjo institucional, mas também com outras políticas que vem sendo adotadas pelo atual governo federal, inclusive a tendência de enfraquecer os movimentos sociais representados pelas Organizações Não-Governamentais, que são fundamentais como representantes da sociedade nos foros colegiados do SINGREH (conselhos de recursos hídricos e comitês de bacias hidrográficas).
Os aspectos e incertezas mencionados acima demonstram a dimensão e a complexidade desta área estratégica do ponto de vista ambiental, social e econômico, que se forem concretizados sem dúvida ampliarão crises, conflitos e tragédias relacionados à água, que já ocorrem nos dias atuais e que penalizam a população brasileira. Neste sentido, é importante que o SINGREH, com todas as instituições e organizações que o compõe, esteja preparado para enfrentar a nova ordem, zelando pela aplicação da Política de Recursos Hídricos, principalmente quanto aos seus princípios de participação social nas decisões e de adoção da bacia hidrográfica como unidade de gestão e de maneira integrada e sistêmica, visando sempre a segurança hídrica e os usos múltiplos das águas de maneira justa por toda a sociedade brasileira, incluindo as gerações futuras.
Daniela Maimoni de Figueiredo
Pesquisadora Associada e Professora Colaboradora
Programa de Pós-Graduação em Recursos Hídricos – UNIVERSIDADE FEDERAL DO MATO GROSSO (UFMT)
Membro do Observatório da Governança das Águas do Brasil