ENTREVISTA COM GILBERTO VALENTE CANALI – 50 ANOS DE EXPERIÊNCIA EM GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS – Observatório das Águas

ENTREVISTA COM GILBERTO VALENTE CANALI – 50 ANOS DE EXPERIÊNCIA EM GESTÃO DE RECURSOS HÍDRICOS

A Política Nacional de Recursos Hídricos faz quase 22 anos, temos um Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos assentados em um modelo complexo e ousado que requer uma grande articulação de atores, instituições e de políticas públicas diversas e que já conta com 244 Comitês de Bacias, os Conselhos Nacional e Estaduais de Recursos Hídricos, Secretarias e diversos órgãos gestores federal e estadual. 

Desde sua promulgação a gestão das águas vem em uma evolução positiva do ponto de vista do que preconiza a lei que é a gestão descentralizada e participativa, abrindo possibilidades para o diálogo entre poder público, sociedade civil e o setor privado e desta forma resolver os desafios das águas no Brasil. Ao mesmo tempo ainda são identificadas lacunas na sua implementação e a baixa visibilidade que vêm permeando os debates sobre o tema, o que vem estimulando diversos estudos e projetos que neste momento avaliam a gestão de recursos hídricos no Brasil.  

Neste momento que podemos dizer como especial para estes quase 22 anos da 9443, entrevistamos o Engenheiro e advogado Gilberto Canali, atuante por mais de 50 anos na área de engenharia hidráulica, planejamento e gestão de recursos hídricos.

Quem é Gilberto Valente Canali?

Engenheiro e advogado, atuante por mais de 50 anos nas áreas de engenharia hidráulica, planejamento e gestão de recursos hídricos, meio ambiente e saneamento. Trabalhou na empresa de consultoria Morrison Knudsen-Internacional de Engenharia, na ELETROSUL e na Itaipu Binacional. Foi professor no IPH-UFRGS e na UFSC, presidente da ABRHidro, membro do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, vice-presidente do Comitê Brasileiro de Barragens e membro do Comitê de Rios Internacionais Compartilhados da Comissão Internacional de Grandes Barragens (ICOLD). Atualmente é membro do Conselho de Regulação da Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento (ARIS), em Santa Catarina, e consultor no Brasil e no exterior nas áreas de sua especialidade.

1) Qual é o paralelo que você faz da Constituição de 88 com a criação da Política Nacional de Recursos Hídricos?

GVC – A Política Nacional e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos são decorrentes da Constituição Federal de 1988, a qual estabeleceu entre as competências da União a de instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso (Art. 21, XIX). Sob tal comando, em 1991 o Poder Executivo Federal tomou a iniciativa de enviar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Nº 2.249, o qual sofreu alterações significativas até a promulgação da Lei Nº 9.433, em 8 de janeiro de 1997.

2) Como foi o processo de construção da Lei 9433?  Qual foi o seu papel nesta construção? Quais as etapas? Como foram as articulações? Quais foram os pontos de resistência?? Como chegaram a vitória de conquistar a lei?

GVC – A necessidade de construção de uma política nacional de recursos hídricos teve origem nos anos setenta e oitenta, impulsionada por dois fatores de relevantes transformações no desenvolvimento nacional: primeiro, o extraordinário desenvolvimento do setor elétrico, através do aproveitamento do potencial de energia hidráulica, reconhecidamente abundante no território nacional, sob a égide do Código de Águas, vigente desde 1934. Em segundo lugar, não menos importante, a promulgação da Política Nacional de Meio Ambiente em 1981.

De fato, o interesse estratégico em aproveitar o potencial hidrelétrico de grandes rios brasileiros, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento do país passava a por em evidencia a degradação dos recursos naturais, suscitou as primeiras preocupações com os impactos ambientais associados e visão de que tal desenvolvimento deveria se dar sem prejudicar ou obstaculizar, no que diz respeito aos recursos hídricos, a sua conservação e o seu aproveitamento para fins múltiplos.

A noção do aproveitamento racional e integrado dos recursos hídricos para fins múltiplos passa a surgir e a permear pelas discussões a respeito das demandas de desenvolvimento e bem estar social, especialmente quanto à universalização do abastecimento de água potável, saneamento, produção de energia elétrica e de alimentos, assim como, de modo crescente, quanto ao controle da poluição e seus reflexos sobre a saúde humana.

A criação da Associação Brasileira de Recursos Hídricos–ABRH (hoje, ABRHidro), em 1977, é um marco a destacar, eis que propiciou a disseminação do conhecimento das ciências da água produzido no país e no exterior, em paralelo com a capacitação profissional promovido por inúmeras instituições que hoje constituem uma rede com abrangência nacional.

Muitos eventos sobre a gestão de recursos hídricos e do meio ambiente podem ser registrados a partir dessa época, mormente porque, ao que se dizia, o setor elétrico se sobrepunha, ao ponto de se tronar praticamente hegemônico, sobre os demais setores que demandavam pelo uso daqueles recursos. É dessa época o início das discussões a respeito da criação de comitês de bacia espelhados na experiência de outros países, que no entanto só se concretizou por aqui em poucos casos como o do Comitê Sinos, seguida pelo Comitê do Gravataí, em 1988.

A mobilização pela concepção de uma política de recursos hídricos teve a condução de personalidades importantes como Bendito Barbosa, Flavio Terra Barth, Cid Tomanik Pompeu, Fabio Feldman, Aroldo Cedraz, José Machado, assim como presidentes e membros da ABRH, tendo a Associação servido como caixa de ressonância dos debates que aconteciam em âmbito nacional, especialmente através de simpósios, e também da Lista ABRH-Gestão, criada por Flavio Barth, que se veio a se tornar palco virtual de intensa participação e contribuição de muitos atores interessados na questão, muitas das quais consolidadas nas Cartas e Anais da ABRH.

A tramitação do Projeto de Lei no Congresso sofreu muitas modificações, a começar pela apresentação de um substitutivo pelo Relator, Deputado Fabio Feldman, por exemplo, prevendo a gestão descentralizada e com a participação do Poder Público, usuários e comunidades, não prevista no PL do Poder Executivo.

O substitutivo representou um grande avanço em relação ao PL do Poder Executivo, entretanto não chegou a ser apresentado ao plenário da Câmara dos Deputados. Finda a legislatura e não tendo sido reeleito o deputado relator, a matéria foi retomada na legislatura seguinte, tendo como relator o Deputado Aroldo Cedraz, que decidiu por apresentar um novo substitutivo, alterando sem no entanto perder os avanços principais propostos pelo Deputado Fabio Feldman. Seguiram-se muitas propostas de emendas, sem grandes divergências ou pontos de resistência, graças inclusive ao trabalho de articulação do próprio Relator e também do Deputado José Machado, que ao final lograram a aprovação do plenário da Câmara e a promulgação da Lei pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso.

3) O quanto você valoriza a conquista da Lei 9433? Qual o tamanho da importância da lei 9433 para a gestão das águas no país? Tem alguma questão que faria diferente na construção da 9433?

GVC – Os fundamentos, objetivos, diretrizes gerais de ação e instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos, tal qual expressos na Lei Nº 9.433/97, assim como a estrutura do Sistema Nacional de Gerenciamento, por si sós revelam a sua importância para o país, especialmente por que ali estão contidos os fundamentos da gestão e uso das águas com todos os requisitos de governança para a promoção da hoje chamada segurança hídrica. Compare-se, por exemplo, o enunciado da Lei com o conceito de segurança hídrica proposto pelas Nações Unidas e ver-se-á que nada falta, ainda que se considere necessário aperfeiçoar alguns de seus dispositivos, o que certamente será feito como evolução natural e com base na experiência de pouco mais de 20 anos de sua aplicação.

A destacar a importância da clara prioridade ao abastecimento humano e dessedentação animal em situações de escassez, a noção do valor econômico da água, implicitamente associada ao seu uso múltiplo, a bacia hidrográfica como unidade territorial de atuação da Política e do Sistema, e a gestão descentralizada e participativa.

É verdade que a plena implementação de instrumentos como a cobrança e o enquadramento, assim como a do Sistema Nacional de Gerenciamento ainda tem muito a avançar, sendo para tanto necessário melhor entender, solucionar ou remover alguns gargalos que tem sido identificados em trabalhos recentes de atores no Sistema, de pesquisadores, e de algumas instituições como a OCDE, Banco Mundial e WWF-Brasil

Nesse sentido, é imprescindível estabelecer critérios e um plano de contas referentes ao processo de gestão, para definir caminhos para a sustentabilidade do Sistema de Gerenciamento, que hoje, atrelado à cobrança pelo uso da água, parece não ter condições de prosperar. Por sua vez, e para ficar apenas como Sistema, é imprescindível rediscutir o papel do Conselho Nacional de Recursos Hídricos, sua composição e funcionamento. Parece ter-se atingido consenso de que não é possível que o CNRH exerça papel como definido na Lei se a maioria absoluta de seus membros permanecer com o Poder Executivo Federal, assim como é consenso de que todos os estados da Federação deveriam estar nele representados.

Além destes dois aspectos, é preciso resolver o déficit de representação e representatividade da participação das comunidades (sociedade civil).

Complementando, é imprescindível promover maior e mais efetiva integração e colaboração entre o CNRH e o CONAMA, sem o que o comando à integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental dificilmente será atendido conforme prevê a Lei. Em particular, neste quesito, talvez caiba propor uma alteração quanto á concepção dos planos de recursos hídricos, não como instrumentos exclusivos da política de recursos hídricos, mas concebendo-os como instrumentos comuns ás duas políticas através por exemplo de abordagens de maior abrangência através de avaliação ambiental estratégica da bacia hidrográfica, de modo a dar base mais consistente ao planejamento, outorga, licenciamento e assim por diante.

Estas são apenas amostras de quanto ainda é preciso pensar e agir para aperfeiçoar a Política e o Sistema de Gerenciamento.

4) Quais foram os avanços primordiais da 9433 com relação ao Código das Águas?

GVC – O Código de Águas de 1934 embora sempre considerado como instrumento que atenderia o uso da água para fins múltiplos, inclusive reconhecendo o seu valor econômico, em verdade, a partir de sua concepção inicial para assegurar o desenvolvimento da agricultura, com o passar dos tempos se tornou o instrumento basilar que deu substancial segurança jurídica de que necessitava o setor elétrico brasileiro para assegurar investimentos necessários à para o atendimento da crescente demanda pelo desenvolvimento econômico do país.

Tendo sido implantado no governo autoritário de Getúlio Vargas, sobreviveu, e na verdade serviu bem aos planos de sucessivos governos, especialmente no período autoritário a partir de 1964, permitindo investimentos maciços em grande usinas hidrelétricas, porém, de certa forma, em detrimento de outros uso da água, ao menos em investimentos de grande escala que poderiam ter sido feitos em concomitantemente, como seria o caso para a implantação de uma rede hidroviária que tirasse proveito dos grandes reservatórios e trechos fluviais regularizados.

A Lei Nº 9.433/97 veio com a noção de que induziria ao planejamento e o uso integrado dos recursos hídricos tomando por base o desenvolvimento das bacias hidrográficas. Neste sentido foi um grande avanço conceitual sobre o que previa o Código de Águas. Porém, indubitavelmente, a grande inovação da Lei foi a introdução do conceito de gestão descentralizada e participativa, a partir do qual forma concebidos e estão sendo implantados os colegiados do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos, tanto Estado por Estado, como no âmbito nacional.

5) Que pontos a lei 9433 avançou e que não podem ser perdidos em momento algum? Se houver alguma mudança, que pontos da 9433, precisam ser mantidos?

GVC – Em geral, creio que os pontos aqui abordados representam avanços introduzidos pela Lei e que não deveriam ser perdidos em momento algum, pois seria um retrocesso. Entendo que não há outro caminho senão o de buscar aperfeiçoar o que se conseguiu até aqui, sem retroceder.

6) O que precisa avançar na 9433??

GVC – Vários pontos foram abordados aqui, valendo recapitular a necessidade de maior integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental, definições a respeito da sustentabilidade do Sistema de Gerenciamento, maior clareza sobre o instrumento da cobrança pelo uso dos recursos hídricos, tanto no que diz respeito ao uso dos recursos arrecadados para o custeio da gestão, como para investimentos na implementação dos planos de recursos hídricos, entre outros.

Vale ainda citar a necessidade de melhores estratégias de abordagem do enquadramento, levando em conta que a degradação da qualidade dos cursos d´água é resultante de 500 anos de usos desregrados dos recursos naturais que os afetam e que portanto o custo da reversão dessa situação não deveria ser arcado apenas pelos atuais e futuros usuários da água, pelo menos não apenas pelos usuários diretos, ou seja, é necessário que o tema seja tratado em âmbito maior envolvendo a sociedade como um todo.

Outra questão muito relevante que começa a surgir através do PROGESTÃO da Agência Nacional de Águas é a implementação de um sistema de avaliação dos avanços da Política e do Sistema através de indicadores que permitam definir caminhos e estratégias mais eficientes e eficazes de gestão e uso dos recursos hídricos.

Por fim, creio ser muito importante dar maior significado e visibilidade social à gestão, seus atributos, objetivos, instrumentos e, sobretudo, resultados esperados, visando a superar uma visão predominantemente tecnocrática e acadêmica que, na visão de muitos, ainda persiste. Neste sentido, seria muito interessante que tal significado viesse a partir de uma atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento com maior ênfase para o saneamento, incluindo a gestão de mananciais de abastecimento público, controle de efluentes, combate incessante á poluição dos cursos d´água, ênfase aos aspectos relacionados à saúde pública e outros que certamente promoveriam maior visibilidade social à gestão dos recursos hídricos.

 Entrevista concedida por email ao Secretário Executivo do OGA Brasil no mês de dezembro de 2018.

 

 

 

 

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