Implementação do novo marco legal do saneamento é uma oportunidade de garantir o devido cuidado com nossas bacias hidrográficas
Em março, o Congresso Nacional concluiu o ciclo de debate político ao apreciar os vetos presidenciais ao novo marco legal do saneamento, determinado a partir da Lei Federal No. 14.026/20. Inicia-se agora a implementação destas regras, tendo como horizonte a urgente e inadiável universalização do acesso aos direitos humanos à água e ao esgotamento sanitário, bem como uma melhor gestão, proteção e recuperação de nossas águas.
Entre a aplicação da lei e seus desdobramentos práticos, com impactos positivos na vida das pessoas, há um espaço a ser ocupado e um conjunto de preocupações a serem consideradas. Uma delas é a necessária integração entre as políticas públicas de recursos hídricos com o setor de saneamento básico. Este último representa um setor de extrema importância no uso e no cuidado com a água, ocupando a posição de segundo maior utilizador de água no Brasil, significando 23% do total dos usos consuntivos segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
O Observatório da Governança das Águas (OGA), enquanto articulação nacional voltada ao acompanhamento da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos (PNRH) – Lei Federal No. 9.433/97 e demais políticas setoriais que impactam as águas, vislumbra um conjunto de oportunidades, com potencial de desdobramentos positivos para a gestão dos recursos hídricos, a partir da implementação do novo marco legal do saneamento.
A primeira se apresenta a partir dos processos de regionalização e planejamento dos serviços de saneamento básico. Um dos eixos que estruturou todo o debate da nova legislação partiu do princípio de que para haver interesse por parte dos prestadores e viabilizar ganhos de escala seria necessário agrupar municípios, segundo as condições de cada território. Dentro do prazo de um ano, portanto, até junho deste ano de 2021, os governos estaduais devem liderar, junto com os municípios, os processos de criação destes blocos regionais. Mas quais serão os critérios e metodologias que cada estado utilizará para acomodar as regras atuais? As bacias hidrográficas representam as unidades territoriais de planejamento da política de recursos hídricos e precisam ser consideradas na organização do setor de saneamento básico inclusive para definição dos blocos de regionalização. Caso contrário, uma ausência de integração seguramente gerará impactos negativos para o cuidado com as águas. O tempo urge e um olhar atento a esses processos deve ser lançado.
Caso os Estados não cumpram esse prazo, a União poderá assumir sua competência subsidiária e intervir na criação das regiões de saneamento básico (art. 52, § 3º, Lei 11.445; art. 15, Lei 14.026).
É necessário destacar igualmente que a própria Lei Federal No. 14.026/20 indica que os planos de saneamento básico, inclusive estes novos planos de recorte regional, devem “(…) ser compatíveis com os planos das bacias hidrográficas e com planos diretores dos Municípios em que estiverem inseridos, ou com os planos de desenvolvimento urbano integrado das unidades regionais por eles abrangidas” (art. 19, § 3º, Lei 11.445). É preciso fazer valer na prática essa determinação legal!
A terceira oportunidade, de aliar o cuidado com os recursos hídricos à implementação do novo ordenamento jurídico para o saneamento, está nos processos de modelagens de privatizações de algumas empresas públicas de saneamento, liderado pelo BNDES, e as concorrências nos processos de concessões de serviços em determinadas localidades. Essa foi mais uma novidade criada pela Lei Federal No. 14.026/20: não é possível firmar contratos de prestação de serviços sem haver um processo de concorrência[1]. Os titulares do serviço ao convocarem estes processos licitatórios têm agora a oportunidade de inserir entre os critérios o cuidado com as águas. O titular, que deve zelar pelo interesse público, pela busca à universalização do acesso ao saneamento e pela gestão sustentável da água, deve estimular os concorrentes a apresentarem o cuidado com os recursos hídricos como variável eliminatória dos processos de concessão dos serviços.
Outra novidade, foi criada pelo novo marco legal do saneamento, que outorgou à Agência Nacional de Águas (ANA), que passa a levar Saneamento Básico em seu nome oficial a partir de então, a competência de editar normas nacionais de referência para a regulação (art. 1º, Lei 9.984/00). Simplificando, será algo como uma lista das melhores práticas para a atividade da regulação. O que, se respeitadas as características regionais e locais, será um avanço importante, dado que a regulação exerce um papel fundamental no mundo do saneamento básico, criando as diretrizes e os incentivos adequados para que os prestadores desse serviço de monopólio natural alcancem seus resultados econômicos de forma aliada ao interesse público. A adesão pelas agências reguladoras destas normas a serem editadas pela ANA passa a ser um dos critérios de repasse de recursos financeiros pela União (art. 50, inciso III, Lei 11.445).
A ANA está executando essa tarefa a partir de instrumentos de consulta pública, construindo uma agenda de trabalho para os próximos dois anos[2]. Mais uma vez é possível identificar um potencial de sinergia entre saneamento e recursos hídricos. É indispensável incluir na construção dessas normas de referências para a regulação os diferentes aspectos do serviço de saneamento que podem impactar positiva ou negativamente nossas águas.
Cabe ainda ressaltar, que o novo Plano Nacional de Recursos Hídricos entrou em processo de construção e será mais uma oportunidade para que um instrumento da gestão de recursos hídricos possa apontar diretrizes com relação ao saneamento, águas subterrâneas, integração da gestão de recursos hídricos com a gestão ambiental, identificação de conflitos pelo uso da água e especialmente preparar para que a gestão das águas enfrente os desafios das mudanças climáticas e garanta segurança hídrica. É, portanto, a oportunidade e o momento para a ANA promover e efetivar a integração de recursos hídricos com o saneamento.
O novo Plano Nacional de Recursos Hídricos será efetivo na medida em que ele consiga articular e ter a participação equilibrada de todos os segmentos – poder público; sociedade civil; setor privado – para que o plano seja um grande pacto nacional colocando a água com um fator estratégico para o desenvolvimento social, ambiental e econômico equilibrado e justo.
A integração das políticas de recursos hídricos e do saneamento, que com a devida participação e transparência, alavancará esforços técnicos e financeiros para promover as transformações sistêmicas para a segurança hídrica a partir da recuperação e melhoria da qualidade das nossas águas e bacias hidrográficas. Mas promovendo outros benefícios como a qualidade de vida da população, a geração de empregos, a promoção dos usos múltiplos e o desenvolvimento econômico. É imprescindível que todas as instituições atuantes no SINGREH, incluindo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Comitês de Bacias (CBHs), Conselhos de Recursos Hídricos, Órgãos Gestores, garantam um equilíbrio na governança para que a integração da gestão da água e do saneamento aconteça.
OBSERVATÓRIO DA GOVERNANÇA DAS ÁGUAS
28 de abril de 2021
[1] A única exceção é nas ocasiões em que é o próprio titular que presta o serviço para ele mesmo.
[2] Para maiores informações, consultar: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/retificacao-307010471